Os portugueses inventaram as favelas?
29 novembro 2025
(excertos soltos)
A navalha era o instrumento predilecto da expansão do génio e o argumento decisivo nas disputas e rixas. Um inglês fleumático, mas assustado, de passagem por Portugal, escrevia a propósito: «A maioria dos portugueses veneram a navalha com a ternura de uma arma nacional. Ela é-o de fato e os registos policiais dão eloquentes provas da sua acção. Segui com atenção os movimentos de um desordeiro e vereis que as mãos procuram instintivamente os bolsos, onde a navalha espera o momento de intervir.» [...] A certos locais a polícia não ia com receio de andar em bolandas diante do bico dos sapatos e do bico das facas da frandulagem.
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A grande maioria dos portugueses adolescentes que desembarcaram na cidade entre 1850 e 1872 morriam três anos após a chegada ao Brasil, vítimas da febre amarela, das péssimas condições das moradias, das jornadas extenuantes de trabalho. Para os imigrantes chegados neste período, a experiência da imigração aproximava-se de muitas formas do regime das sanzalas. As constantes denúncias de «escravidão branca» veiculadas pelo Jornal do Commércio são candente testemunho desse drama.
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Os imigrantes mudam a vida da cidade. O êxodo português em massa para o Rio coincide com o nascimento do cortiço, a moradia precária que se tornou típica da miséria urbana da segunda metade do século xix 19.
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Na falta de posturas municipais que providenciem a respeito das casas denominadas «cortiços», que existem em quase todas as ruas da cidade e onde reside a grande maioria de estrangeiros, principalmente portugueses, e de artistas naturais do país, tem-se esforçado a polícia por adoptar medidas convergentes não só a manter a ordem nesses lugares habitados por pessoas de educação e costumes menos ajustados [itálico nosso], e por isso propensas a praticar actos reprovados, mas também a garantir a salubridade.
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Um censo realizado em 1856 mapeou a população portuguesa habitante dos cortiços naquele ano (v. quadro n.° 1). Cerca de metade da população moradora em cortiços (51,9%) era de origem portuguesa, onde os nacionais estavam em clara minoria (35%).
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Os portugueses imigrantes tinham também lugar cativo nas estatísticas criminais. Todos os relatórios do chefe de polícia da década de 1860 foram concordes em registar maior número de crimes cometidos por estrangeiros do que por nacionais, estrangeiros esses na esmagadora maioria provenientes de Portugal.
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Quem era esse português imigrante? A tradição deixou uma imagem que se solidificou na memória: largos bigodes, tamancos, um emprego de caixeiro arranjado além-mar, aversão pelos nacionais, apesar do apetite pelas mulatas, uma tenacidade de trabalho a toda a prova, laborioso, mas mesquinho no trato, sóbrio e económico, que enviava todos os meses as suas economias para a terra natal, e desonesto na relação com os fregueses nacionais, além de só prestar favores a compatriotas.
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O relatório do director da Casa de Correcção da Corte publicado em 1872 é um exemplo magnífico dessa leitura. Revelando que os portugueses representavam muito mais de 50% dos estrangeiros detidos na Casa, e em número superior aos próprios brasileiros, e que em grande parte eles eram condenados por crimes «contra a propriedade» (roubos, assaltos, arrombamentos, etc), desfia a sua preocupação com o destino desses jovens estrangeiros que engrossavam as estatísticas criminais.
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Os padrões de moradia de portugueses na cidade estavam geralmente limitados pelas freguesias mais centrais, e nessa área eles tendiam a solidificar as suas solidariedades, dividindo um mesmo cortiço, que podia ser inteiramente ocupado por imigrantes de Portugal. Essas comunidades criavam laços de autodefesa que geralmente resultavam em conflitos entre cortiços por questões de rivalidade ou prestígio, como uma grande briga entre portugueses ocorrida em 14 de Junho de 1877 na freguesia de Santana entre os moradores da Rua de São Diogo, 99, e os da Rua do General Pedra, 99 41.
Fonte: Dos fadistas e galegos: os portugueses na capoeira, Análise Social,vol.xxxi, Carlos Eugénio Líbano Soares. Disponível em: PDF